A MISERICÓRDIA TRIUNFA SOBRE O JUÍZO

“Porque o juízo será sem misericórdia sobre aquele que não fez misericórdia; e a misericórdia triunfa do juízo.” Tiago 2:13

  I.    UM PASTOR MISERICORDIOSO

No fim do ano de 1988, eu cursava o segundo ano do segundo grau (atual ensino médio), e fui comunicado que a avaliação final de Educação Física consistiria de uma dança de candomblé vestido a caráter. A direção da escola informou que somente os evangélicos seriam liberados da dança mediante a apresentação do cartão de membro ou de uma declaração de uma igreja evangélica confirmando a filiação do aluno.

Eu, embora fosse nascido e criado numa Assembleia de Deus, eu não era membro de igreja alguma, e nem mesmo era batizado. Mas, não dançaria e nem me vestiria com aqueles trajes de modo algum.

Conversei com a minha mãe acerca da avaliação final de Educação Física, e decidimos conversar com o pastor da igreja dela, onde eu havia sido criado, e onde eu não frequentava, e nem mesmo visitava, desde 1982 quando ainda era uma criança.

Eu pedi ao pastor que emitisse uma declaração em papel timbrado da igreja, assinada, carimbada e com data atual confirmando a minha filiação ao rol de membro daquela igreja já há algum tempo, com o objetivo de ludibriar a escola e não participar daquele ritual de candomblé.

Na verdade, eu pedi ao pastor para mentir confirmando que eu iria ludibriar a escola com aquela mentira.

Bem, o pastor Antônio era um homem sério e tremendamente rígido, integro e temente a Deus. Era um homem zeloso com as coisas da igreja.

O pastor Antônio sempre morou na mesma casa numa favela em Rocha Miranda, subúrbio do Rio de Janeiro. Até aos 70 anos de idade, ele usava uma bicicleta velha como meio de transporte para ir à igreja em outro bairro. Apesar de ter cinco filhos, nenhum deles era de sua igreja, e nem mesmo sua esposa, que é da Igreja Batista junto com três filhas .

Ao completar 70 anos, a igreja matriz o convenceu a receber um carro popular para o seu deslocamento até a igreja. Mas, mesmo com a idade bem avançada, este pastor continuou a subir no telhado para tocar pessoalmente as obras e os reparos no prédio da igreja, que ele pessoalmente construiu.

Este pastor quando jovem sobreviveu a atropelamento por trem. Com o avançar da idade e com câncer de próstata ia ministrar o culto muitas vezes usando fralda geriátrica. O pastor Antonio pediu a Deus para morrer na igreja trabalhando na obra do Senhor.

Então, este pastor temente a Deus respondeu ao meu pedido de forma positiva, dizendo: “Eu não terei a menor dificuldade em te dar esta declaração, porque eu sirvo em novidade de espírito que ama, e não na velhice da letra fria da Lei que condena.”

II.    O CUMPRIMENTO DA LEI E A NECESSIDADE HUMANA

“E aconteceu que, no segundo sábado após o primeiro, passou pelas searas, e os seus discípulos iam arrancando espigas e, esfregando-as com as mãos, as comiam. E alguns dos fariseus lhes disseram: Por que fazeis o que não é lícito fazer nos sábados?” Lucas 6:1,2

Os fariseus acusaram aos discípulos de Jesus de praticarem o que não é lícito fazer num sábado (Mateus 12:2). E obviamente eles também acusavam a Jesus de acobertar tal ilicitude.

Os fariseus não objetaram à apropriação das espigas, pois a Lei o permitia (Deuteronômio 23:24,25). Eles, no seu zelo de guardar a letra da Lei nos mínimos detalhes, estavam criticando o trabalho manual de colher espigas realizado num sábado, como sendo uma violação de Êxodo 20:10.

Portanto, a interpretação restrita da Lei encarava o apanhar e debulhar de espigas como trabalho, o qual não era permitido aos sábados.

Jesus respondeu a acusação dos fariseus com os três argumentos a seguir:

1- Jesus cita Davi e os pães da proposição (I Samuel 21:1-6). Embora a Lei divina restringisse os pães da proposição aos sacerdotes (Levítico 24:9), a extrema necessidade humana invalidava este regulamento. (Marcos 2:25,26).
Jesus se referiu às Escrituras dando uma ilustração diferente da vida de Davi. Se Davi pôde, em uma emergência, fazer o que era ilícito, porque Ele não podia?

Assim, Jesus ressalta que a condenação e o juízo da Lei não prevalecem diante da misericórdia e do amor. Assim como Davi estava em necessidade e teve fome, e comeu os pães da proposição, dos quais não era lícito para ele comer, os discípulos de Jesus também estavam com fome num sábado (Mateus 12:1), e colheram as espigas para saciar a fome a despeito da proibição da Lei quanto ao sábado.

Isto nos mostra que a necessidade do homem está acima da fria obediência da letra da Lei, e neste caso a violação da Lei é isenta de culpa (Mateus 12:5). Jesus ratifica este conceito quando expõe um novo princípio: “O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado.” (Marcos 2:27).

Do mesmo modo, a Lei foi feita por causa do homem, e não o homem por causa da Lei. Assim o Filho do homem até do sábado é Senhor (Marcos 2:28). Cristo não estava declarando sua liberdade e autoridade para violar a lei do sábado, mas antes declarava sua qualificação para interpretar corretamente a Lei sob a ótica da misericórdia.

A característica principal desta ótica encontra-se na declaração acerca de Davi: “quando estava em necessidade”. Cristo está declarando que a necessidade humana supera qualquer mero preceito ritualístico e cerimonial da Lei.

Este princípio era invertido naqueles dias pelos fariseus, e até hoje este princípio continua sendo invertido no meio do povo de Deus, porque este povo ainda tem prazer em ver o juízo triunfar sobre a misericórdia.

2- Cristo mostra que a lei do descanso sabático não era intransponível, pois dos sacerdotes se exigia pela própria lei que trabalhassem no sábado (Números 28:9,10). O argumento é, se os sacerdotes não são culpados ao trabalhar no sábado para promoção da adoração no templo, quanto menos culpa têm os discípulos em usar o sábado para a obra de Cristo, que é a realidade espiritual para a qual o Templo apontava.

E Jesus termina dizendo: “Pois eu vos digo que está aqui quem é maior do que o templo.” (Mateus 12:6). Cristo não estava declarando sua liberdade e autoridade para violar o templo, mas antes declarava sua perfeita qualificação para ensinar acerca da Lei sob a ótica da misericórdia.

3- Após se identificar como Senhor do sábado, Cristo afirmou que os fariseus não conheciam a vontade de Deus e nem o seu imenso amor: “Mas, se vós soubésseis o que significa: Misericórdia quero, e não sacrifício, não condenaríeis os inocentes.” Mateus 12:7)

Vejam que após admitir que seus discípulos “violaram” o sábado, Jesus afirmou que os fariseus não sabiam interpretar a Lei, e, por conseguinte, condenavam inocentes porque não sabiam discernir o sentido em que Deus quer misericórdia, e não sacrifício. 

Mas, por quê inocentes precisariam de misericórdia? Não eram inocentes por não violarem a lei, mas eram inocentes por violarem a lei numa necessidade emergente. 

O sacrifício neste contexto poderia estar ligado à passagem anterior acerca do jejum (Marcos 2:18-23 e Lucas 5:33-39). Mas, refere-se também ao fato de que, por ser um sábado, os discípulos não poderiam colher as espigas a despeito deles estarem com fome, e de ter as espigas prontas para serem colhidas na seara a sua frente. E, isto com certeza seria um enorme sacrifício.

O que Jesus condena é o fato de alguém com fome e tendo a comida na seara, se sacrificar deixando de comer para obedecer a um preceito frio da Lei. Jesus afirma que Deus não quer isto, e diz que quem pensa assim não entendeu a mensagem de Deus quando disse: “Misericórdia quero, e não sacrifício”.

III.    FAZER O BEM ESTÁ ACIMA DA OBSERVÂNCIA DA LEI?

“Então Jesus lhes disse: Uma coisa vos hei de perguntar: É lícito nos sábados fazer bem, ou fazer mal? salvar a vida, ou matar?” Lucas 6:9

Mas, Jesus segue adiante com os seus discípulos, e noutro sábado foram à sinagoga, onde estava um homem que tinha uma das mãos mirrada; e os fariseus, para o acusarem, o interrogaram, dizendo: É lícito curar nos sábados? (Mateus 12:9,10).

A resposta de Jesus demonstra bem o que é a misericórdia triunfar sobre o juízo: “Qual dentre vós será o homem que tendo uma ovelha, se num sábado ela cair numa cova, não lançará mão dela, e a levantará? Pois, quanto mais vale um homem do que uma ovelha? É, por consequência, lícito fazer bem nos sábados.” (Mateus 12:11,12).

Na graça, todas as coisas nos são lícitas, e algumas não nos convém (1 Coríntios 10:23). Mas, o que não convém é matéria de conveniência, e não de ilicitude. Assim, até mesmo a mentira pode ser justificada como um ato de misericórdia. Ou não é lícito nos sábados fazer bem?

Qual dentre vós seria o homem que sabendo a localização de um amigo, e ao ser questionado pelos homens que querem mata-lo, contaria aos assassinos onde está o amigo somente para não proferir uma mentira? Pois, quanto mais vale a misericórdia de preservar uma vida do que a obediência à letra fria da Lei?

IV.    A PRUDÊNCIA E A NECESSIDADE HUMANA

“E louvou aquele senhor o injusto mordomo por haver procedido prudentemente, porque os filhos deste mundo são mais prudentes na sua geração do que os filhos da luz. Lucas16:8

A parábola do mordomo infiel (Lucas 16:1-11) traz uma mensagem espiritual grandiosa, pois mostra um mordomo ciente que seria demitido por má gestão do patrimônio do patrão, e que decide, por conta própria, dar generosos descontos aos empresários que deviam ao seu patrão, visando obter um novo emprego por meio da gratidão daqueles empresários aos quais ele concedeu generosos descontos.

O patrão daquele mordomo foi prejudicado pela sua atitude, mas o patrão da parábola elogiou o mordomo infiel. Ainda que o senhor daquele mordomo não aprovasse seu procedimento, não pôde deixar de admirar seu recurso, ao qual chamou de prudente.

E Jesus, que é representado na parábola pelo patrão, complementa: “porque os filhos deste mundo são mais prudentes na sua geração do que os filhos da luz.” (Lucas 16:8).

O que Jesus definiu como prudente foi uma atitude ardilosa do mordomo. Mas, o mordomo agiu de forma ardilosa como prudência para evitar ficar desempregado e vir a passar necessidade como Davi com os pães da proposição do templo, e como os discípulos de Jesus na seara.

Assim, não é só a necessidade humana que supera toda a frieza dos preceitos da Lei, mas também algo que possa vir a nos colocar em necessidade está semelhantemente acima toda a frieza dos preceitos da Lei. E o mordomo foi elogiado e por agir ardilosamente e por prudentemente antever que a sua demissão o colocaria em estado de necessidade humana, pois nem mesmo de mendigar ele poderia viver.

Muitos de nós Já ouvimos muitos crentes dizendo que não obedeceram ao chefe quando  este os mandou mentir dizendo que não estava presente. Contudo, desobedecer ao chefe também é pecado, assim como mentir. Falta prudência a estes crentes, pois serão demitidos e colocarão a família em dificuldades. De fato, os filhos deste mundo são mais astutos no trato entre si do que os filhos da luz.

V.    A LIÇÃO ESPIRITUAL GRANDIOSA

Leia com atenção as palavras de Jesus a seguir:

“E eu vos digo: Granjeai amigos com as riquezas da injustiça; para que, quando estas vos faltarem, vos recebam eles nos tabernáculos eternos. Quem é fiel no mínimo, também é fiel no muito; quem é injusto no mínimo, também é injusto no muito. Pois, se nas riquezas injustas não fostes fiéis, quem vos confiará as verdadeiras? E, se no alheio não fostes fiéis, quem vos dará o que é vosso?”  (Lucas 16:9-12).

Por meio das riquezas de origem iníqua fazei amigos, disse Jesus. Aqui riquezas é a tradução de mamom, a palavra aramaica que significa dinheiro ou propriedades. O mordomo infiel sabia que ele ganhara a gratidão daqueles empresários cujas contas ardilosamente ele reduziu o valor que era devido ao seu patrão. Eles apreciariam o alívio financeiro e estariam prontos a ajudá-lo. O Senhor Jesus deu a entender que as propriedades terrenas podem ser usadas para ajudarmos os outros, cuja gratidão nos garantirá boas-vindas na eternidade. E que aqueles que não se tornam fiéis nas riquezas injustas, ninguém lhes confiará as riquezas verdadeiras. Neste contexto, o uso dos bens materiais é um teste de caráter. Aqueles que não podem usá-los com sabedoria não merecem ter responsabilidades espirituais.E, sabedoria aqui neste contexto nada mais é do que prudência, esperteza, astúcia e ardil.

Eu disse anteriormente que a parábola do mordomo infiel traz uma mensagem espiritual grandiosa acerca da graça, do perdão, do amor e da misericórdia.

Muitos não têm misericórdia daqueles que consideramos pecadores, e praguejam juízos temporais e eternos sobre a vida daqueles com pecados mais evidentes. E ainda acusamos de acobertadores de pecados  àqueles que agem com misericórdia para com os pecadores.

Esta parábola do mordomo infiel muito nos ensina acerca do dia terrível do juízo. E Jesus advertia com essa parábola, que neste dia daremos conta da administração de nossas vidas e das nossas relações com nosso próximo. Todos enfrentaremos o juízo divino. A verdade é que ninguém é perfeito. Todos cometemos erros nas nossas ações e nas nossas relações com Deus (o patrão) e com o próximo (os empresários). Certamente cada ser humano será achado em falta neste juízo.

Falhamos em tudo que recebemos de Deus para ser e para fazer, e erramos em nossos julgamentos morais e existenciais. Falhamos desde a administração da nossa inteligência, da nossa energia e da nossa criatividade até no uso dos talentos que recebemos para usar a serviço do reino. Ao contrário, muitas vezes buscamos fazer a nossa própria vontade, e satisfazer nossos desejos carnais.

De forma que, ao passar pelo minucioso exame divino, se apelarmos para nossas obras, fidelidade, santidade e obediência, seremos certamente achados em falta. Quem poderá subsistir ao juízo divino? (Salmos 130:3,4).

Assim, quando chegar o dia de prestação de contas, se chegarmos diante de Deus apresentando o padrão relacional humano, onde as relações são regidas pelos binômios custo x benefício, créditos x débitos, erros x acertos existenciais, apelando para o que fizemos de certo ou errado, seremos nada mais que mordomos infiéis e condenados.

O mordomo infiel da parábola tem a revelação dessa contabilidade existencial mesquinha, tão usada no cotidiano dos homens. E ele percebeu que se fosse julgado com essa perspectiva de erros e acertos, de créditos e débitos, ele não sobreviveria ao absoluto juízo do seu Senhor.

Ele entende que suas ações tinham que expressar algo que ia além daquela simples e fria matemática. De modo que, o mordomo infiel se apressa a relativizar suas contas, e suaviza também as dívidas daqueles que as tinham com seu patrão, de acordo com os padrões da graça e da misericórdia.

Quem sabe que é pecador e tem consciência de que é apenas um mordomo infiel dos bens do Senhor, sabe que um dia prestará contas ao Senhor, e assim passa a suavizar com a misericórdia todos os seus vereditos, sentenças e juízo de valor acerca do próximo.

Daí, o mordomo infiel manda chamar todos os devedores do seu patrão. E começa uma nova conta, suavizada, que vai além da matemática fria, que vai além de débitos e crédito, que vai muito além de erros e acertos, se achegando à graça e à misericórdia.

O mordomo infiel sabia que precisava de um julgamento baseado não em erros e acertos, mas baseado na graça de Deus, e ele começa a distribuir graça e perdão. Ele muda a forma como as dívidas eram vistas e cobradas. Ele passa a agraciar os seus julgamentos e sentenças. Ele compreende assim os parâmetros do reino de Deus.

Ele entendeu que a graça, o perdão e a gratidão eram infinitamente superiores, e fariam mais diferença na hora do juízo, do que a tentativa de exigir que os devedores de seu Senhor pagassem tudo o que deviam conforme constava nas papeletas. Mas, ele cancela os escritos de dívidas que eram prejudiciais àqueles devedores, e reescreve com misericórdia.

É assim, um lindo e maravilhoso ensinamento de Jesus, o Mestre dos Mestres!
Quem reconhece que tem falhas, passa imediatamente a suavizar os seus julgamentos acerca do próximo, e muda os parâmetros de erros e acertos, de dívidas e pagamentos, para os parâmetros do perdão e da graça, no qual, a misericórdia triunfa sobre o juízo!
  
CONCLUSÃO

O pastor Antônio de Souza Oliveira faleceu aos 85 anos no fim de 2015, ao escorregar e bater a cabeça numa pilastra quando, sozinho, limpava a caixa d’água do prédio da Assembleia de Deus de Bento Ribeiro no Rio de Janeiro. Assim, este pastor teve atendido por Deus o seu pedido para morrer na igreja trabalhando na obra do Senhor. E foi assim numa manhã de sábado.
Este artigo é uma homenagem póstuma a este servo do Senhor.


“O qual nos fez também capazes de ser ministros de um novo testamento, não da letra, mas do espírito; porque a letra mata e o espírito vivifica.” 2 Coríntios 3:6


  Marcos Alexandre Damazio


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